28 Setembro 2013
No que se refere à responsabilização pelos crimes cometidos pela ditadura militar, "o problema maior não é a Constituição em si, mas a disputa pelo seu sentido. Caso houvesse um consenso político maior sobre a necessidade de se responsabilizar os crimes cometidos pelos agentes da ditadura, a Constituição poderia servir tranquilamente de base para isto", constata o doutor em Direito.
Foto: http://bit.ly/1avjUGY |
“O que o Brasil hoje é em termos políticos e institucionais, bem como as suas possibilidades para o futuro, deve-se obviamente à sua história e ao seu passado de lutas, conflitos, conquistas e vilanias”, sustenta o professor José Carlos Moreira Filho, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ao contrapor a ideia de que o povo brasileiro é acomodado em relação às questões políticas.
Em seu resgate da história brasileira, o professor aponta para pistas de como o regime de exceção acabou deixando marcas em nossa Constituição e de como a violência se mantém nas relações em sociedade.
“É evidente, assim, que a violência brasileira, espalhada nas relações sociais e fortemente atuante no modus operandi das forças repressoras do Estado, não é algo que tenha se originado na ditadura civil-militar instaurada em 1964, ela vem de muito antes. Por outro lado, a última ditadura contribuiu significativamente para introjetar capilarmente na cultura e no funcionamento das nossas instituições práticas sistemáticas de tortura, assassinato e desaparecimentos forçados e influenciou fortemente a consolidação de uma legalidade autoritária que até hoje se mantém entre nós", argumenta.
José Carlos Moreira Filho considera que há um núcleo na identidade de nossa Constituição que se refere ao reconhecimento e repúdio das práticas de violência correspondente aos períodos repressivos. Nesse sentido, aponta o trabalho do Projeto Brasil Nunca Mais, como uma experiência positiva e que permite manter a história política do país viva. “É também muito instrutivo o exame dos documentos judiciais organizados pelo Projeto Brasil Nunca Mais, hoje disponíveis em ambiente virtual em sua integralidade, graças à recente digitalização que foi feita em projeto apoiado pela Comissão de Anistia”, avalia.
José Carlos Moreira Filho é mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina — UFSC, doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná — UFPR. Atualmente é professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS, Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça; Membro-Fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição — IDEJUST.
José Carlos Moreira participará do ciclo Constituição 25 anos: República, Democracia e Cidadania, proferindo a conferência "O direito e a memória no Brasil a partir da Constituição Federal 88", no dia 6 de novembro, às 20h, na Sala Ignacio Ellacuria e companheiros, no IHU.
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Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que é importante manter viva e resgatar a memória política do Brasil e como a Constituição garante esse direito?
José Carlos Moreira Filho - O que o Brasil hoje é em termos políticos e institucionais, bem como as suas possibilidades para o futuro, deve-se obviamente à sua história e ao seu passado de lutas, conflitos, conquistas e vilanias. Resgatar a memória política é importante por dois grandes motivos: o primeiro é que ajuda a desconstruir o mito de que o povo brasileiro é mole, passivo e aceita todas as injustiças que contra ele são praticadas pelas suas tradicionais elites.
Há uma história muito pouco conhecida de resistência, de lutas, de mobilizações pela emancipação política e pela conquista de direitos e de acesso à satisfação de necessidades fundamentais, sejam materiais ou culturais.
A resistência dos povos indígenas à aculturação; o Quilombo dos Palmares governado por Ganga Zumba e Zumbi; a Confederação do Equador de Frei Caneca; a Cabanada, a Cabanagem, a Revolta dos Malês, a Sabinada, a Balaiada, a Revolta dos Muckers em São Leopoldo, Canudos, a Revolta da Chibata, as lutas dos trabalhadores, o combate ao fascismo pelos comunistas brasileiros, Trombas e Formoso, as Ligas Camponesas, as organizações de resistência à ditadura, figuras como Carlos Marighella, que liderou a luta contra duas ditaduras, a Guerrilha do Araguaia, entre tantos outros movimentos populares que compuseram uma admirável história de luta e resistência no país. Os movimentos sociais de hoje, mesmo sem se darem conta disso, se alimentam da memória, por vezes subterrânea e acumulada das lutas do passado.
A segunda razão pela qual é importante resgatar e re-conhecer a memória política brasileira é pela continuidade no seio das suas instituições públicas e civis de práticas e culturas autoritárias, violentas e escravistas, que enxergam na organização política e na ocupação do espaço público, simbolizado plenamente pela "rua", nada mais do que baderna e perturbação da ordem com fortes tendências subversivas. É desde a escravidão legalizada de índios e negros que as autoridades e elites brasileiras cultivam um único método para lidar com as supostas ameaças à ordem: a força bruta.
Violência brasileira
É evidente, assim, que a violência brasileira, espalhada nas relações sociais e fortemente atuante no modus operandi das forças repressoras do Estado, não é algo que tenha se originado na ditadura civil-militar instaurada em 1964, ela vem de muito antes. Por outro lado, a última ditadura contribuiu significativamente para introjetar capilarmente na cultura e no funcionamento das nossas instituições práticas sistemáticas de tortura, assassinato e desaparecimentos forçados e influenciou fortemente a consolidação de uma legalidade autoritária que até hoje se mantém entre nós.
Quando falo em legalidade autoritária menciono o hábito de se distrair nas tecnicalidades rasteiras que são o dia a dia da cultura bacharelesca, a ponto de se legalizar o ilegalizável, de se perder de vista a conexão das regras mais prosaicas com o arcabouço de princípios e valores que demarcam a identidade jurídica de uma sociedade comprometida com a democracia e com a proteção dos direitos humanos. É, em verdade, um problema de princípios. Isto explica, por exemplo, as bizarras construções dos atos institucionais criados na ditadura, a revalidação em pleno século XXI da lei de anistia de 1979, no aspecto em que bloqueia a investigação e a responsabilização dos crimes de lesa humanidade praticados pelos agentes da ditadura, bem como os famigerados autos de resistência.
Heranças da ditadura
Entre outras heranças da última ditadura, não se pode deixar de mencionar a construção de um poder midiático que visivelmente atrapalha e impede o necessário aprofundamento democrático brasileiro. Recentemente o jornal O Globo publicou um editorial declarando ter sido um erro o apoio ao golpe de 1964 e à ditadura que se seguiu, mas em suas razões simplesmente reforçou os falsos pretextos que até hoje são replicados para o golpe e não disse uma palavra nem sobre os crimes contra a humanidade perpetrados pelo sistema que apoiou, nem sobre os escancarados favorecimentos que recebeu durante esses 21 anos de ditadura, que transformaram a Rede Globo em um império que faz larga sombra a qualquer outra organização de mídia do país.
É importante resgatar a memória política especialmente a partir do ocorrido na última ditadura, dada a sua proximidade histórica e o fato de que muitos dos agentes perpetradores e protagonistas do golpe e do regime, bem como os que resistiram e sofreram severas punições e perdas, ainda estão vivos. É puxando o fio da meada da ditadura civil-militar e que tremula bem à nossa frente que temos condições mais efetivas de promover um necessário exercício de memória para as instituições pervertidas pela generalização da violência, dos desmandos e da legalidade rasteira e superficial. Trazer à tona a memória política desse longo e dolorido episódio é decisivo para trazer à reflexão democrática toda a nossa história política.
Ditadura e Constituição
Outra boa razão para concentrar o foco do direito à memória na ditadura instaurada em 1964 é a sua forte ligação com a Constituição republicana de 1988. Na verdade, nenhuma Constituição pode ser vista como uma espécie de marco zero jurídico e político. No caso brasileiro, assim como a própria transição democrática, a elaboração da Constituição e a sua interpretação desde então tem sido palco da disputa de diferentes sentidos. Ora sinalizando para a continuidade da ordem jurídica/política anterior, ora sinalizando a ruptura para com ela. Tal característica não é, obviamente, exclusiva do caso brasileiro. Ao longo do século XX, os processos transicionais de regimes autoritários para regimes mais abertos ou democráticos têm evidenciado, ao mesmo tempo, algumas continuidades e algumas transformações em relação à ordem anterior. Nenhuma identidade constitucional se forma do nada e nenhuma se consolida a um só tempo e em definitivo. Há sempre uma dinâmica que envolve a ordem anterior e a que a sucedeu.
Identidade
Partindo do enfoque desenvolvido por Michel Rosenfeld acerca do conceito de identidade constitucional, é possível ver na Constituição, tanto em sua formulação quanto em sua interpretação e reformulação, um espaço de tensões e confluências em relação às sucessivas ordens jurídico-políticas e em relação às dimensões de uma sociedade plural e multicultural. Por este viés, a Constituição é espaço de contínuas construções e reconstruções da sua própria identidade, característica que só tende a aumentar quanto mais o aspecto democrático das sociedades políticas que as têm se aprofunde e se prolongue.
Contudo, pelo ângulo da justiça de transição, existe, nas Constituições que emergiram de transições políticas, um núcleo fundamental e inegociável, ainda que ele mesmo seja diverso em suas manifestações e intensidades. Trata-se de reconhecer e evitar a repetição das injustiças e violências praticadas pela ordem autoritária.
Enfoque transicional
Ruti Teitel argumenta que o enfoque transicional brinda o fenômeno do constitucionalismo com um olhar mais adequado do que aquele proporcionado pelos modelos teóricos herdados da Ilustração, visto que, nestes, prioriza-se a Constituição como uma espécie de marco zero que projeta suas luzes para a frente, insistindo em um imaginário fundacional que se concentra em reproduzir uma identidade mesmificada e idealizada através do tempo. Por outro lado, os modelos constitucionais mais realistas, que veem na Constituição um mero reflexo do jogo de forças do momento, também deixam escapar o caráter transformador inerente às Constituições democráticas que emergem de períodos autoritários, embasadora, em muitos contextos, de fatos imprevisíveis e surpreendentes.
O enfoque transicional torna indispensável o olhar histórico e politicamente situado. Não é possível conceber a Constituição como uma fundação abstrata e descontextualizada da ordem jurídica. Por outro lado, evidencia que na Constituição serão encontrados resquícios da ordem anterior, bem como elementos de ruptura. Há, porém, um núcleo da identidade democrática da Constituição que nunca se perde de vista, embora possa ser mais ou menos obscurecido a depender dos próprios processos de transição e do correlato grau de aprofundamento democrático. Este núcleo é o reconhecimento e o repúdio das violências praticadas nos períodos repressivos. E veja, a partir daí, como é dramático o nosso caso, já que justamente este aspecto nuclear da nova identidade constitucional que começou a se formar após a ditadura continua sendo bloqueado pelo mimetismo da brutalidade ao qual eu me referia no início desta resposta.
Sentido da Constituição
Para finalizar, volto ao tema da disputa pelo sentido da Constituição. Como destaca de modo perspicaz Cristiano Paixão, a partir das eleições de 1986 e mais intensamente com a instalação da constituinte, tornou-se nítida a disputa em torno do significado da Constituição, seja no conflito em torno dos procedimentos adotados pelos constituintes para elaborarem o texto, seja nos esforços de defini-la como o resultado de uma ruptura ou de uma continuidade com o regime de força.
Alguns, como os juristas Manoel Gonçalves Ferreira Filho e José Carlos Moreira Alves, declararam à época que a Constituição consagraria os ideais revolucionários de março de 1964, já outros, como Ulysses Guimarães e Mário Covas, fizeram questão de assinalar a Constituição como um marco de repúdio e ruptura à ditadura que se encerrava. O sentido da Constituição, especialmente no que se refere aos seus marcos principiológicos e identitários, já começou em franca disputa, e como se viu recentemente no julgamento da ADPF 153 (1), que em abril de 2010 analisou a validade da lei de anistia de 1979 como impeditivo para a investigação e a responsabilização dos crimes praticados pela ditadura, assim continua.
A constituinte que elaborou a atual Constituição trouxe de fato uma rica mobilização de setores populares e de grupos organizados da sociedade civil que surpreenderam o forte controle do processo de transição política praticado pelos militares e demais setores de apoio à ditadura.
Movimentos sociais
A mobilização e os procedimentos adotados ao longo do processo constituinte permitiram que os movimentos sociais e amplos setores populares verdadeiramente participassem e interferissem no resultado final. Foi o que se viu, por exemplo, na questão indígena, nos direitos dos trabalhadores (especialmente no tocante à sindicalização e ao direito de greve), na questão ambiental, na ampliação do rol de direitos fundamentais e na sua blindagem via cláusulas pétreas, na explícita abertura ao direito internacional dos direitos humanos, na questão urbana (de modo ainda tímido), na abolição da desigualdade no tratamento dado aos filhos e às entidades familiares, no novo papel atribuído ao Ministério Público — MP, nos princípios que regem a Administração Pública, entre outros.
Questões-chave
Por outro lado, algumas questões-chave permaneceram intocadas ou abordadas de maneira muito tímida ou insuficiente, como ocorreu no caso da reforma agrária, da segurança pública e das forças armadas. Diante do contexto ainda delicado do processo de redemocratização, os movimentos sociais que atuaram no processo constituinte, bem como outras forças políticas de repúdio à ditadura, e até mesmo os setores organizados em torno dos que foram perseguidos politicamente, não investiram nesses temas, em especial no relativo à estrutura repressiva e militarizada dos órgãos de segurança pública e da manutenção das forças armadas como uma espécie de poder moderador.
Forças armadas
O artigo 142 da Constituição estatui que as forças armadas "destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Ainda que este artigo tenha mencionado que a garantia da lei e da ordem se dá por iniciativa dos poderes constitucionais, fica no ar saber-se o que satisfaz a condição deste acionamento. A Lei Complementar nº 69 de 1991 definiu que cabe ao Executivo o direito de pedir a intervenção interna.
Outra pergunta que pode ser feita: o que representa a violação da ordem? Quais pessoas definirão isto? De todo modo, não creio que o art. 142 esteja a legitimar a possibilidade de um Golpe de Estado, ainda que sempre seja possível encontrar malabaristas do direito autoritário dispostos a endossar interpretações deste calibre quando lhes é conveniente.
Porém, o art. 142, em conjunto com os demais dispositivos constitucionais que tratam do tema, não demarca um estatuto suficientemente subordinado das forças militares ao poder civil e à democracia. Mantém-se ainda uma forte militarização das forças de segurança no país, aplicando ao policiamento interno, do qual participa ostensivamente a polícia militar, o mesmo caráter de combate ao inimigo que predominou ao longo da ditadura. Mantém-se, igualmente, a justiça militar. A legislação que regula a vida militar, como o Código Penal Militar, por exemplo, vem dos anos ditatoriais, aliás como muitas outras leis estruturantes.
De todo modo, é sintomático que na primeira versão apresentada do art. 142, quando não se atribuía aos militares o papel de garantidores da lei e da ordem, o ministro do Exército à época, General Leônidas Pires Gonçalves, tenha ameaçado zerar todo o processo de redação constitucional e o então Presidente da Comissão de Organização Eleitoral Partidária e Garantia das Instituições (que era encarregada dos capítulos ligados às forças armadas e à segurança pública), senador Jarbas Passarinho, o mesmo que endossou o AI-5 mandando às favas os escrúpulos, tenha dito que a esquerda queria se vingar dos militares e deles retirar a responsabilidade pela ordem interna. Diante da pressão, os constituintes voltaram atrás e fizeram o texto citado acima. Não há no Brasil, portanto, até os dias atuais, uma clara separação entre a polícia, que por vocação deveria cuidar da segurança interna, e as forças armadas, vocacionadas para os conflitos externos.
IHU On-Line – Como se dá a relação entre a Constituição Federal e os Direitos Humanitários Internacionais?
José Carlos Moreira Filho - Primeiramente, é importante fazer um ajuste técnico dos termos. O Direito Internacional Humanitário remete à secular construção, bem consignada nas Convenções de Genebra, de um Direito da Guerra, ou seja, na necessidade de que mesmo em uma guerra haja limites. Por exemplo, pratica um crime de guerra aquele comandante que ordena a tortura e o assassinato de soldados do exército inimigo que estão aprisionados e indefesos.
Contudo, ao longo do século XX, os piores crimes praticados pelos Estados, tanto em quantidade como em qualidade, não foram esses e sim aqueles praticados contra os seus próprios cidadãos ou contra populações desarmadas. E tais crimes foram denominados de crimes contra a humanidade. Não são crimes de guerra, pois não se pode vislumbrar qualquer nível de proporcionalidade entre todo o aparato repressivo e burocrático do Estado de um lado, e grupos de civis e cidadãos de outro, que deveriam ser protegidos pelo Estado que os acossa. Ao conjunto de normas, conceitos e princípios que visam à proteção do indivíduo diante do poderio e da violência dos Estados, denominou-se Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Nossa Constituição, em seu art. 4, inciso II, diz que a "República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais", entre outros princípios, pelo da "prevalência dos direitos humanos". Ainda, em seu art. 5, § 2º, estabeleceu o princípio do catálogo aberto de direitos fundamentais, ou seja, a possibilidade de que outros direitos assumidos em tratados de direitos humanos pudessem fazer parte do rol constitucional de direitos fundamentais.
Direito internacional
Sobre este tema, é ilustrativo visitar a discussão feita no Supremo Tribunal Federal — STF a respeito do status da Convenção Americana de Direitos Humanos e, por tabela, de qualquer tratado internacional de direitos humanos firmado pelo país antes da Emenda Constitucional nº 45/2004. Em 25 de setembro de 1992, o Brasil depositou sua carta de adesão à Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Posteriormente, em 10 de dezembro de 1998, o Brasil reconheceu a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a ela se submetendo soberanamente. Este fato gerou uma discussão acerca da estatura hierárquica das normas garantidoras de direitos humanos presentes na Convenção, mas não explicitadas no texto constitucional.
De 5 de outubro de 1988 até a Emenda Constitucional nº 45, promulgada em 30 de dezembro de 2004, o art. 5º da Constituição de 1988 trazia apenas dois parágrafos após a enumeração dos incisos definidores de direitos e garantias fundamentais. O § 1º estabeleceu a aplicabilidade imediata e o § 2º estabeleceu o princípio da abertura do catálogo de direitos fundamentais, demarcando que os "direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".
A presença solitária desses parágrafos, ainda sem o acréscimo do 3º e 4º , que viriam somente com a emenda constitucional nº 45, criou dúvida a respeito da estatura hierárquica dos direitos e garantias expressos nos tratados internacionais de direitos humanos aos quais o Brasil havia aderido após a promulgação da Constituição, isto porque, até então, a jurisprudência consolidada do STF era de que os tratados de direitos humanos teriam o status de lei ordinária.
Prisão por dívida
Foi em 3 de dezembro de 2008, com a decisão do leading case que discutiu a prisão civil do depositário infiel (HC 87.585/TO e RE 466.343/SP) que o posicionamento do STF atingiu um novo patamar sobre o tema do status dos tratados de direitos humanos. A Constituição de 1988 previu, em seu art. 5º, LXVII, que "não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel". Por outro lado, a Convenção Americana de Direitos Humanos estabeleceu, em seu art. 7º, que "ninguém deve ser detido por dívidas", excepcionando apenas o caso do devedor alimentar.
Solução
A solução encontrada pelo STF para dirimir a antinomia clara entre a Convenção e a própria Constituição brasileira tanto nos casos citados acima como em outros que se seguiram foi estabelecer duas importantes inovações. A primeira delas significou a mudança da jurisprudência que delimitava a estatura de mera lei ordinária aos tratados de direitos humanos. Vingou na opinião majoritária de cinco ministros a tese da supralegalidade dos tratados de direitos humanos, isto é, são superiores às leis ordinárias mas inferiores à Constituição, ainda que façam parte de um bloco de constitucionalidade por especificarem direitos fundamentais referidos no texto constitucional.
Registre-se que os outros quatro votos demarcavam a teoria do status constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, mesmo no caso de tratados incorporados antes da emenda constitucional nº 45 e, portanto, sem a utilização do rito que passou a ser previsto no art. 5º, §3º. Muito embora sejam mais aceitáveis sob o ponto de vista da coerência na busca de uma ordem jurídica cada vez mais forte na promoção e proteção dos direitos humanos tanto a tese do status constitucional quanto a da supraconstitucionalidade (os tratados de direitos humanos valem mais do que a própria Constituição), o STF optou pela via da supralegalidade. Ao menos avançou em relação à jurisprudência anterior.
Supralegalidade dos direitos humanos
De todo modo, a adoção da supralegalidade dos tratados de direitos humanos não impediu, no caso da prisão do depositário infiel, que se desse preferência à Convenção Americana de Direitos Humanos em relação à Constituição brasileira. E esta é a segunda inovação. O fundamento adotado para tanto foi o princípio da aplicação da norma mais favorável em direitos humanos, ainda que em um engenho de argumentação se tenha estabelecido que tal predomínio não necessariamente revoga a norma constitucional restritiva, mas impede que norma infraconstitucional lhe dê eficácia. Desse modo, ao mesmo tempo em que o STF afirmou que a Constituição vale mais que o tratado, assegurou que o tratado valesse mais do que qualquer lei ordinária e que, no caso de norma mais favorável, impedisse a regulamentação de dispositivo constitucional restritivo, prevalecendo inclusive sobre norma constitucional originária.
Tal posicionamento causa espécie quando se vislumbra a decisão do STF sobre o status da lei de anistia de 1979. A suprema corte brasileira, embora não o declare explicitamente na decisão da ADPF nº 153, conferiu prevalência à Lei nº 6.683/1979, especialmente em seu art. 1º, §1º, dispositivo que trata dos "crimes conexos" e que, em interpretação predominante até aqui, anistia agentes da ditadura que praticaram crimes de lesa humanidade, tanto sobre a Constituição de 1988 como sobre a Convenção Americana e a jurisprudência da Corte Interamericana sobre ela. E corre o risco de fazê-lo também em relação à decisão tomada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund, a depender da apreciação dos Embargos Declaratórios interpostos pela OAB na ADPF nº 153, e que até o dia em que concedo esta entrevista seguiam pendentes de decisão.
Constituição republicana
Tratando primeiramente da Constituição republicana de 1988, deve ser repudiada qualquer tentativa de vincular a soberania da constituinte a uma norma construída na ordem jurídica anterior, de perfil autoritário e ditatorial, mesmo que tenha sido uma norma que serviu para iniciar o processo constituinte como o foi a emenda constitucional nº 26/1985. Além da Lei nº 6.683/1979, a referida Emenda, em seu art. 4, §1º, também estabeleceu a anistia aos crimes conexos. É preciso ter claro, contudo, que esta última norma emendou a Constituição anterior, a de 1969, instituída de modo autoritário em plena ditadura, pertencendo, portanto, à ordem jurídica instaurada de modo ilegítimo pelo golpe de 1964. Ao contrário do que defenderam os ministros Eros Grau e Gilmar Mendes em seus respectivos votos na ADPF 153, quaisquer condições impostas pela ordem constitucional anterior não podem ser tomadas como efetivas e limitadoras do poder constituinte originário, especialmente quando essa ordem anterior é autoritária.
Assim, as disposições sobre anistia que constam na emenda constitucional nº 26/1985, bem como as que estão na Lei nº 6.683/79, só devem vincular a nova ordem naquilo que não sejam com ela incompatíveis. Ao contrário, a Constituição de 1988 deixou bem claros os seus pressupostos axiológicos e principiológicos quanto ao tema. Em seu art. 1º, inciso III, estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento da República; em seu art. 4º, inciso II, estabelece que a República rege-se nas suas relações internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos; em seu art. 5º, inciso XLIII, prevê que a tortura é crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia; e, finalmente, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias em seu art. 8º, menciona que "é concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares", ou seja, nenhuma palavra em toda a longa extensão do texto constitucional sobre anistia a crimes conexos ou de qualquer natureza. Veja-se que, quando se fala em anistia na Constituição de 1988, ela é direcionada para os que foram perseguidos políticos, e não para os que realizaram esta perseguição, sem falar que é explicitamente vedada no caso de crimes de tortura. É verdade que esta última previsão se volta aos casos posteriores a 1988, mas indica de todo modo o repúdio da nova ordem a atos de anistia voltados para este tipo de crime.
Quanto à prevalência dos direitos humanos na ordem internacional, prevista no art. 4º, inciso II da Constituição, depreende-se daí que a orientação a ser tomada deveria ser a mesma adotada no caso da vedação da prisão do depositário infiel, ou seja, a de que os tratados de direitos humanos prevaleçam sobre qualquer norma da ordem jurídica interna que restrinjam os direitos e garantias ali previstos, ainda mais quando a norma colidente seja uma lei ordinária editada na ordem constitucional anterior.
IHU On-Line – A Constituição inaugurou o mais longo período de democracia representativa. No entanto, em que medida ela contribuiu para a responsabilização de crimes cometidos contra os direitos humanos no período militar?
José Carlos Moreira Filho - Como creio já ter ficado claro nas respostas anteriores, o problema maior não é a Constituição em si, mas a disputa pelo seu sentido. Caso houvesse um consenso político maior sobre a necessidade de se responsabilizar os crimes cometidos pelos agentes da ditadura, a Constituição poderia servir tranquilamente de base para isto. Importa, contudo, perceber que a decisão do STF na ADPF 153 não fechou ainda a questão. Há uma condenação da Corte Interamericana de Direitos Humanos pendente sobre o Brasil e que determina a responsabilização dos crimes de desaparecimento forçado ocorridos na Guerrilha do Araguaia, e recomenda a persecução criminal dos demais crimes praticados pela ditadura.
O Ministério Público Federal — MPF, por meio de entendimento institucional firmado pela 2ª Câmara Criminal, compreendeu muito bem o recado e já vem dando início a diversas ações penais pelos crimes de sequestro ou de ocultação de cadáver, visto que ainda não está tipificado no Direito Penal brasileiro o crime de desaparecimento forçado. Nesses casos, a prescrição nem se apresenta como um possível obstáculo, visto que, como os corpos não foram encontrados até hoje, o crime continua sendo praticado, não dando início, assim, ao prazo prescricional. É o que se chama de crime permanente. Em termos institucionais, portanto, já é possível colher um claro descompasso entre o Poder Judiciário e o MPF. Caso o STF continue insistindo em sua tese sobre a anistia, tais ações estarão fadadas ao insucesso, ao menos em suas pretensões judiciais. Caso o STF venha a se posicionar deste modo, inclusive, estará claramente desobedecendo a uma sentença condenatória voltada para o Estado brasileiro (e portanto, para todos os poderes que o compõem), prolatada por um Tribunal ao qual soberanamente se submeteu, por ação tanto de sua representação diplomática quanto de seu poder Legislativo.
IHU On-Line - Podemos pensar que entre os Poderes Constitucionais, o Judiciário é o menos democrático, já que não tem eleições diretas? Como se estruturou o Estado democrático de Direito dentro deste contexto? Como resolver isso?
José Carlos Moreira Filho - Primeiramente, não tenho convicção de que estabelecer eleições para juízes possa resolver o problema do Judiciário. Mas penso, sim, que temos sérios problemas nas formas de seleção dos candidatos à carreira. Para começar, o concurso público para a magistratura cobra eminentemente conteúdos técnicos e dogmáticos, e de um modo que exige praticamente uma única grande habilidade do candidato: decoreba. Não há nada de errado em se cobrar um conhecimento técnico-jurídico, aliás, isto é necessário, sem dúvida. O problema é não aferir nas provas graus de "inteligência ética" (vamos chamar assim) e habilidades concretas na resolução de conflitos, na sensibilidade diante dos casos concretos e dos diferentes perfis de cidadãos que passarão pelos seus julgamentos e análises caso aprovado. É que existe uma imagem traiçoeira de que o juiz não deve se envolver com nada, ficando encastelado no seu conhecimento teórico do Direito e na sua suposta superioridade moral. É claro que o juiz tem de cultivar a imparcialidade, mas isto não quer dizer que ele tenha que ser neutro, até porque isto é impossível. Eu sou da opinião que um juiz tem o direito de assumir uma posição política na sociedade. Claro que para isto não precisa se filiar a algum partido político. A política é, antes de tudo, a ação no espaço público, a disposição de dialogar, discutir e buscar o bem comum.
Creio que deveríamos também repensar seriamente o tema do controle externo da magistratura. O CNJ não é suficientemente externo, vamos dizer assim. Aliás, este é um debate que vem se arrastando, sem solução, desde a constituinte.
Memória política
Por fim, articulando esta resposta com o tema da primeira pergunta, precisamos cada vez mais resgatar a memória política do judiciário brasileiro. Como bem ilustra a pesquisa de Anthony W. Pereira, o judiciário brasileiro foi altamente conivente com as políticas criminosas de perseguição, tortura e extermínio implementadas pela ditadura que se iniciou em 1964. Desde o encampamento explícito da Doutrina de Segurança Nacional e da paranoia anticomunista até o desprezo pelas inúmeras denúncias de tortura que eram feitas pelos presos políticos. Basta ler algumas decisões judiciais da época para se ver isto. É também muito instrutivo o exame dos documentos judiciais organizados pelo Projeto Brasil Nunca Mais, hoje disponíveis em ambiente virtual em sua integralidade, graças à recente digitalização que foi feita em projeto apoiado pela Comissão de Anistia.
Foram muitos juízes civis, não só militares, que assim procederam. Uma verdadeira aliança entre o judiciário e a ditadura. Não tivemos aqui, e tudo indica que estamos muito longe de ter, um mea culpa como feito recentemente pelo judiciário chileno no marco dos 40 anos do violento golpe desferido por Pinochet e seus sequazes.
A Associação Nacional dos Magistrados chilenos, que reúne cerca de 70% dos juízes do país, divulgou uma declaração pública na qual pede perdão pelas atuações e omissões praticadas pelo judiciário do Chile. Dentre tais atitudes, menciona-se o pouco caso que faziam das denúncias de torturas e abusos que eram feitas pelos prisioneiros políticos. Para finalizar esta entrevista, nada melhor que conferir alguns trechos valiosos desta declaração, e que cabem como uma luva para o judiciário brasileiro.
"Estimamos que no es posible eludir la responsabilidad histórica de nuestra judicatura en relación a la vulneración de los derechos básicos de la persona humana producidos durante el régimen dictatorial. Hay que decirlo y reconocerlo con claridad y entereza: el Poder Judicial y, en especial, la Corte Suprema de la época, claudicaron en su labor esencial de tutelar los derechos fundamentales y proteger a quienes fueron víctimas del abuso estatal."
"(...) nuestra judicatura incurrió en acciones y omisiones impropias de su función, al haberse negado, salvo aisladas pero valiosas excepciones que nos honran, a prestar protección a quienes reclamaron una y otra vez su intervención. La inadmisibilidad o el rechazo por parte de nuestros tribunales de miles de recursos de amparo, muchos de los cuales fueron fundadamente interpuestos en nombre de compatriotas de cuya suerte nunca más se supo, la negativa sistemática a investigar las acciones criminales perpetradas por agentes del Estado y la renuencia a constituirse personalmente en centros de detención y tortura, sin duda alguna, contribuyeron al doloroso balance que en materia de derechos humanos quedó tras ese gris período."
Nota:
1.- Arguição de descumprimento de preceito fundamental 153 [ADPF 153]: Sobre esta decisão do STF e especialmente sobre as fracas e preocupantes fundamentações apresentadas pelos Ministros e Ministras que participaram do julgamento, remeto o leitor a três fontes: SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada Transição Democrática Brasileira. In: Wilson Ramos Filho. (Org.). Trabalho e Regulação - as lutas sociais e as condições materiais da democracia. Belo Horizonte-MG: Fórum, 2012, v. 1, p. 129-177; VENTURA, Deisy. A Interpretação judicial da Lei de Anistia brasileira e o Direito internacional. In: PAYNE, Leigh; ABRAO, Paulo; TORELLY, Marcelo (orgs.). A Anistia na era da responsabilização: o Brasil em perspectiva internacional e comparada. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Oxford: Oxford University, Latin American Centre, 2011. p. 308-343; e MEYER, Emilio Peluso Neder. Ditadura e Responsabilização - elementos para uma justiça de transição no Brasil. Belo Horizonte: Arraes, 2012. (Nota do entrevistado)
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A memória política brasileira à luz da Constituição de 1988. Entrevista especial com José Carlos Moreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU